19/06/2014

A medida da eternidade

Foram três os momentos do sonho, embora isso só possa ser dito agora, já na vigília, posto que em sonho não há precisa divisão temporal – ou espacial. em sonho essas modalidades apenas se desdobram, não sei se podem ser entendidas como sucedentes. apesar disso, no primeiro momento era uma escola, ou melhor, escola não: apenas aula, não sei nem se em uma sala. porém, embora fosse aula numa turma de crianças, lá estava meu eu atual numa carteirinha assistindo uma professora dar instruções. e sei que não era o único fora da faixa etária projetada, havia também pessoas mais velhas do que eu. tudo o mais que me recordo do primeiro momento é que era uma turma de literatura e que de repente estava no quadro uma lista grande das questões que estudaríamos no “período”. animadamente, me ponho a escrever todos aqueles assuntos. a seguir, no que me parece o princípio do segundo momento, pelas linhas do meu caderno uma mulher parecia mergulhar numa escadaria de templo antigo como que expulsa dele. assustei-me com a cena e então estou muito idoso, sendo observado por você, também muito idosa, sorrindo docemente como que dizendo “deixe de bobagens”. com seu jeito próprio de falar, diz calmamente Está na nossa hora, amor. Só isso. Nós já sabíamos que seria assim. meus olhos foram se enchendo de lágrimas quando ela disse Em todos esses dias em nunca deixei de te amar. Eu também, sempre te amei, respondi com sincera felicidade. e estávamos os dois com lágrimas que desciam brincando alegremente por nossas rugas – desdobramentos de pele, escadarias dos olhos. Parece que estamos numa daquelas histórias de amor que parecem impossíveis de serem verdadeiras, você disse e eu respondi Mas agora sabemos que todas elas são reais, que aconteceram todas porque a nossa é verdadeira. um homem apresentava tecnicamente o desenho de uma coluna grega, tradicional, antiga, veiada, em planta baixa exibindo seu desenho interno que deveria sustentar todo o conjunto vertical. o desenho era bonito e a explicação ligeira. de repente, percebi como as rodas dentadas são aquelas mesmas colunas gregas fatiadas finamente como um salame, e que o relógio cartesiano com essas engrenagens de todos os tamanhos e em diferentes posições é na verdade uma catedral sem verticalidade. aí escuto; e descubro ter sido você saindo do banho quando chega me acordando enrolada na toalha. é bem cedo. estão, em tudo, todas as características que me fariam afirmar que acordei, que estamos no tempo atual. contudo, o tempo agora parece enorme. penso, primeiro, que a eternidade das colunas gregas foi fatiada em engrenagens que tenderiam à eternidade, mas que mesmo como relógios inevitavelmente sofrerão o cansaço, o descompasso, e o fim. depois penso que melhor seria dizer que ao invés de fatiada, a eternidade foi medida, ou mediada, por todas as histórias de amor, incluindo a de nós dois. o que obrigaria a uma correção, isto é, a eternidade não “foi”, não poderia “ter sido”, mas “está” – sempre – mediada. agora, me vem um último pensamento de que, inversamente às rodas dentadas, as colunas gregas tenderiam ao dano à ruína à ação do tempo... no entanto, eu e você provamos o contrário

10/03/2013

Meta-Hidra

(aquarela sobre papel, 10x10 cm, 2012)

"Meta-Hidra"

É comum na mitologia o tema de uma questão feita flor.
Tomemos o caso de Narciso; ou o do jovem Jacinto; ou ainda a da ninfa Dafne.
Em todos eles o deus Apolo parece manter relações - diretas ou indiretas.
E em todas essas narrativas Apolo e seus ideais são narrados de perspectivas deturpadas e improdutivas, culminando numa metamorfose vegetal como solução poética inevitável.

A Hidra, a serpente monstruosa de sete ou nove cabeças (depende da versão) tinha por aspecto ainda mais terrível a sua capacidade de fazer renascer qualquer das cabeças quando decepadas. Espécie de figuração de vícios múltiplos e incessantes, como em deltas de grandes rios.

Ou como ramos de uma desastrosa árvore.

Daí uma figuração ainda não contemplada no curso mitológico: a da redenção poética da Hidra por sua transformação vegetal. Nessa, as cabeças seriam ainda mais infinitas e convertidas em sua renúncia em vermelho - em redemoinhos cor-de-sangue. Nos quais, quando se corta ou fere um, nasce outro. Contudo, não no mesmo lugar, mas como fazem as árvores: num caminho alternativo, numa nova experiência e aventura.
O pântano natal do monstro seria agora solo fértil, apto ao crescimento virtuoso do fundo de sua escuridão. Presa ao solo, não seria a Hidra o atacante, mas sempre a receptora, a acarinhada por mãos sensíveis. E retribuiria em perfumes ao invés dos hálitos tóxicos de seus venenos. E cederia de bom ânimo suas cabeças-flor para que os amantes fizessem seus cortejos.

E, através de uma volta sem fim, a Hidra retornaria aos corações humanos renovada. Já não seria a besta fera odiosa que gera ódio e instinto bélico. Mas sim a criatura singela, sujeita até aos sopros, geradora das canções de amor.

Talvez a Hidra fosse apenas a máscara de uma árvore maravilhosa.